"Podemos estar frustrados, irritados, sem paciência. Podemos. Está tudo bem!"

Desabafos de uma psicoterapeuta em Quarentena | Dia 19

Bato a porta, calço os sapatos, pego na chave para chamar o elevador. Depois engano-me e carrego no botão com o dedo e começo as desinfeções… ainda agora comecei.

Saio de carro, felizmente hoje está sol. A música é suave, não quero notícias, só sentir estes 15 minutos de viagem, um céu azul, um ar quente, que curiosamente parece fresco para respirar. O minuto volta a ter sessenta segundos, tanto tempo!

Passo por um placard que diz “Fique em casa”, conselho da DGS. Percebo o conselho, mas sigo o caminho, confiante e solitária. Os carros na estrada passaram a ser menos do que no dia de Natal, mas hoje não há festas, apenas um dia que procuro que seja normal. Entro na Clínica. Ninguém. Subo as escadas às escuras e chego à minha sala. O sol a bater na janela. Volto a respirar fundo e entro na minha nova normalidade. Ligo o computador e aguardo o tempo, com tempo, de estar o mais próxima e atentamente com o outro. Aqui nada muda.

Termino satisfeita, trouxe-me ao dia. A caminho de casa, depois de mais umas portas fechadas atrás de mim e de umas desinfeções, recebo a mensagem “não te assustes ao chegar a casa”. Que bom que é não ter expectativas, ter a realidade tal e qual, sei agora o que me espera. Brinquedos pelo chão, almofadas espalhadas, pegas de crianças pequeninas, falar alto e procura, mais ou menos criativa, por atenção. Respiro fundo, agora o minuto vai acelerando. 

O stress dos pais é notório, as muitas (significativamente mais) bolas a manter no ar, concorrentes umas das outras pelo mesmo tempo. O coração anda acelerado, querer ser eficaz no trabalho, paciente e disponível com os filhos, com energia para casa, nas mais variadas funções que já tínhamos delegado. O stress dos filhos também se evidencia pela busca de algo novo, nos mesmos brinquedos, no mesmo parceiro de brincadeira há quatro semanas, nos mesmo 40 metros quadrados, a dividir com a mobília, sempre à espera de que os ensinem a brincar melhor. Cinco minutos na mesma atividade é um record. O ir lá fora apanhar ar é um programão, mas dura o mesmo tempo do chocolate que acompanha o café, que nos sacia mais antes de o por na boca.

Nunca o tempo será bem aproveitado, ora porque é pouco, ora porque é muito pouco, ou porque um dia será imenso. Que seja vivido no melhor que soubermos, com aqueles que nos acompanham, o tempo de hoje. Alegre se for com saúde, esperançoso se a doença ou a perda estiver perto e, sendo possível, no consolo da proximidade da nossa gente. Podemos estar frustrados, irritados, sem paciência. Podemos. Está tudo bem! Toda a gente é feita de gente. Não de fotografias bonitas, de slogans, de textos emotivos, ou lições que não nos entram na pele. Aprender a ser o melhor de nós pressupõe sabermos aceitar as nossas limitações. Não controlamos nada, exceto o que fazemos com o que não controlamos. Assim continuará a ser. Portanto, está tudo bem já, agora!