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Porto, 24 de novembro de 2020
Exmo. Sr. Presidente da República,
É com grande esperança que lhe escrevo esta carta, esperança no bem que podemos construir a partir daqui, nas “mortes que podemos salvar”. Vou tentar ser breve na esperança de que a verdade se perceba “à primeira vista!”.
Estamos todos a viver um momento de provação sem precedentes, mas é talvez nestes momentos que melhor se mede o carácter de um povo.
Senhor presidente, estamos em guerra, mas para além de salvarmos os vivos é importante sabermos enterrar os nossos mortos. É importante fazermos tudo o que está ao nosso alcance para que no fim, quando a guerra acabar, tudo tenha valido a pena e a vida nasça de novo sem culpas, com a certeza de que fizemos tudo o que podíamos. Este é o sentido que levanta a cabeça para o futuro e nos faz confiar na vida.
Há pessoas a morrer sozinhas todos os dias no nosso país. Há pessoas a chorarem sozinhas por um familiar que morreu sem uma despedida.
Isto é uma tragédia maior do que a morte! E esta se calhar nós podemos evitar.
É comum dizer que, em situações de emergência, temos de nos focar no essencial, mas o essencial só salva o corpo. E para que importa um corpo viver se a sua alma ficou destruída para sempre? Não permitirmos uma despedida é criarmos uma ferida sem cura no coração dos vivos, é termos deixado os nossos mortos à mercê de uns últimos segundos sem um abraço, sem que alguém sussurrasse ao ouvido: “a tua vida valeu, não tenhas medo! Vai correr tudo bem!”
Isto é uma tragédia maior do que a morte! E esta se calhar nós podemos evitar!
A vida não se salva só com ventiladores e camas de hospital, mas também e essencialmente com afetos, para que quando tudo acabar, o sentido volte a aparecer na forma de esperança.
Como profissional de saúde mental numa das maiores instituições desta área, tenho visto as marcas profundas da não despedida. E a verdade é: isto não tinha de ser assim!
Atualmente permitir uma despedida ou não a um doente em fase terminal cabe à boa vontade ou humor de um profissional de saúde e à avaliação subjetiva de cada hospital. Isto é ainda mais dramático para pacientes com Covid. Neste caso, depois de entrar no hospital, não têm direito a qualquer visita e se acabar por falecer, muitas vezes os familiares não veem sequer o corpo. Não há despedida, nem mesmo depois de morrer.
A morte de alguém é sempre difícil de aceitar, até de perceber. Desde sempre que o Homem percebeu a importância de velar o corpo, de criar rituais para que o desaparecimento de uma pessoa ganhe sentido e embale a dor. Quando isto não acontece, a alma de quem fica pode desorganizar-se para sempre. Lembro-me de uma senhora dizer-me: “eu nem tenho a certeza se era a minha mãe que ia naquele caixão”. Isto é silenciosamente, perigosamente trágico!
A despedida devia ser um direito, devia estar protocolado, e se não houver recursos para providenciar o equipamento para que tal aconteça em segurança, temos de arranjar forma de o providenciar. Não podemos apenas encolher os ombros e dizer que “os tempos são difíceis, temos de aguentar”.
É verdade que temos de aguentar, mas temos também de agir, agir sempre sem medo, sem olhar apenas para o concreto e imediato. Se há coisa que este vírus nos ensinou é que os grandes males são invisíveis. E se assim é então lutemos nós também com a arma invisível mais poderosa da humanidade: o amor!
Temos de nos despedir de quem parte… isto é tão importante como respirar!
Escrevo-lhe, assim, porque confio no sentido que tem dado a cada detalhe da nossa nação. Essa atenção ilumina a escuridão dos dias e alinha-nos numa espécie de rumo! É dessa luz que precisamos agora! Muito obrigada!
Atenciosamente,
Lara Morgado