Os sem-abrigo das nossas casas
Na época natalícia muito se escreve sobre os mais desfavorecidos, a tristeza dos que não têm uma posta de bacalhau para comer, a solidão dos que não têm família, dos que vivem na rua, a fragilidade dos doentes nos hospitais. Enfim, de todos aqueles em que as feridas aparecem expostas e fedem para os narizes mais sensíveis.
Mas existe uma outra classe, um grupo absolutamente esquecido, negligenciado pelas instituições de solidariedade, omitido pelos poetas, posto completamente de parte desta agenda da compaixão. Refiro-me tão simplesmente a todos nós.
A este grupo de pessoas que a norma sequestrou e a quem tirou o motivo para chorar. Refiro-me à tragédia silenciosa de quem não tem problema nenhum! De quem tem carro com GPS e tem casa com varanda e roupeiro e tem árvore de natal nas cores da tendência para este ano e que até deixou de fumar e come aquelas quinoas com brócolos que tão bem fazem à saúde e até foi para as danças africanas para fugir à rotina e até saltou de para-quedas e teve uma experiência fantástica e até o bebé nasceu e até todos já sabem disso pela fotografia da mãozinha com a legenda “…três meses de ti”, de quem tem projetos novos e desafios gratificantes, de quem viu o filme que todos comentam, de quem está por dentro dos problemas fraturantes da sociedade e até faz separação do lixo…
A desgraça de quem tem tudo.
Ninguém chora esta desgraça. A nossa desgraça. A tristeza mais profunda que um ser humano pode experimentar – o vazio – a morte perfumada do sentido da vida. A desgraça de todos nós que vendemos a alma ao diabo em nome do medo da solidão, do desconhecido, dos perigos de sermos únicos, e obedecemos de cabeça baixa a este ideal que nos prometeu felicidade e afinal nos pôs a chorar silenciosamente sem saber porquê.
«Que tristeza é esta que não me sai do peito, senhor doutor? Eu tenho tudo para ser feliz!» Perguntamos nós cheios de culpa por sermos tão ingratos a esta vida que tudo nos deu. A ciência entra ao barulho e arranja uma forma de resolver este problema: esta tristeza estranha que aparece sem motivo é afinal uma doença, chama-se depressão, apanha-se como uma gripe e provoca comportamentos estranhos. Dois comprimidos por dia e tudo se resolve, não se preocupem. Vamos, não há tempo para lamúrias! Temos muito que fazer: três artigos para escrever, piadas inteligentes para rir, jantares de natal para comparecer, ainda falta ir ao dentista e levar comida aos pobres e visitar a tia ao lar.
E o natal chega! Aquela maldita noite. A noite em que não sabemos porquê, mas traz alguma verdade às nossas vidas. Uma dolorosa verdade que disfarçamos com decorações fantásticas e jingle bells e rabanadas e lareira com muita lenha para aquecer aquele frio que vem de dentro. Enquanto as criança brincam nesta felicidade plena de quem ainda é livre e acredita que está vivo e que tudo pode acontecer; os adultos comem e queixam-se porque o natal já não é como era, e falam do consumismo e das filhoses que não têm o mesmo cheiro e dos jogos sem interesse, sem se aperceberem que afinal não foi o natal que mudou, mas eles próprios. E a meia noite chega, e as lágrimas da saudade de quem já morreu teimam em cair, as mesmas lágrimas que choram a nossa própria morte, porque afinal nós também se calhar já morremos, não há assim muito mais a fazer nesta vida que não seja pagar as contas e aguentar as culpas. É esta a dolorosa verdade que o natal revela à revelia do que todas as luzes querem mostrar. É esta a nossa tragédia. Alguém nos ajuda?